terça-feira, 18 de agosto de 2009

O Pacto

O PACTO


Estava ali olhando a rua e o corre-corre das pessoas, esperando o momento certo de fisgar alguém pelo olho. Não sentia nada, apenas uma ínfima distância que o separava do resto do mundo. A janela era para ele nada mais que uma tela de cinema, as coisas que aconteciam ali não lhe diziam respeito, a não ser pelo fato de que aquela janela de uma forma ou de outra invadia sua privacidade. O mundo ali fora não lhe pedia licença pra nada. As pessoas nasciam, se amavam, se odiavam e também morriam em frente à sua janela. Queixava-se constantemente desse burburinho que vez ou outra chegava com o vento e impregnava suas cortinas com as baboseiras que o dia podia oferecer.

Dali do alto, viu uma menina vendendo flores no semáforo e lembrou-se do dia em que lhe mandaram flores. Ele pagou o dobro para mandarem de volta a quem as encomendou. Foi assim que perdeu a sua primeira namorada. Não fez nada disso por maldade ou insensibilidade, ele apenas acreditou que apenas seria uma cena romântica nunca vista até então. Como ela era bonita... Lembrava ele. Talvez um pouco baixa para os padrões de beleza que o mundo lhe empurrava goela abaixo, mas era bonita. Certa vez estavam passeando num lindo parque e ela desandou a chorar, não lhe quis contar os motivos. O infeliz ficou imaginado um milhão de coisas, colocando caraminholas na cabeça para poder compreender os motivos daquela cena tão constrangedora, mas nada se encaixava muito bem. Teria sido aquele licor que ele derramara um dia antes na sua blusa nova? Não, não podia ser, isto não era motivo para tanto choro. Talvez tenha sido por causa daquele menino que brincava embaixo da ponte na mira de um carro desgovernado. Não, ela não era tão sensível assim. Depois de ficar assim por três semanas imaginando razões tão ou mais besta do que estas, esqueceu-se do ocorrido. A única coisa que não lhe passou pela cabeça é que às vezes as pessoas choram sem motivo algum, e era esse o motivo dela. Quando não há mais nada para se chorar, choramos simplesmente para que as lágrimas escorram pelo rosto. A menina no semáforo também chorava, mas era por causa da fumaça que lhe coçava o nariz.

Aquela janela continuava ali, trazendo-lhe lembranças que permitiam reconstruir o seu passado. Era assim que manuseava o seu baú, transformando os fatos de acordo com o que melhor lhe convinha a cada instante. A primeira namorada, já foi para ele, a sua grande paixão, já foi um casinho qualquer, e havia sido a primeira porque tinha que começar por alguma. Foi também uma garota que teve a infelicidade de conhecer um cara tão desprezível como ele, ou, pelo contrário, ela teve a sorte de ter em seus braços, ainda que por pouco tempo, um homem de grande valor e que ainda deixaria seu nome inscrito na história. A sua vida tornava-se assim um reconstruto de fatos, onde ele estava presente em todos os momentos, mas em momento algum ele realmente estava lá. Era assim que gastava o seu tempo, se masturbando com vidas que lhe apareciam em flashes, como quem abre e fecha janelas insistentemente procurando uma nova cena a cada instante. Às vezes sentia seus olhos rolando como azeitonas pelos andares abaixo, querendo chegar mais perto e perceber como um olho pode sentir as dores do mundo que não são suas. A janela, foi se tornando assim, cada vez mais sua companheira e confidente, pois tudo o que se passava na sua cabeça passava por aquela janela.

De lá do alto, ele podia ouvir as sinfonias executadas por um sanfoneiro cego que soltava notas tristonhas e abafadas. Na calçada, o chapéu do músico esmoleiro rolava sonhando com uma cascata de pratas. Na platéia alguém se divertia pedindo para que o cego olhasse para os pássaros que estavam sob sua cabeça e que a qualquer momento poderiam lhe dar um troféu por sua melodia angustiosa. O cego, impassível, continuava a bordejar suas notas para um público calmo e irrequieto. O engraçadinho, porém, não percebera que o cego e os pássaros entoavam a mesma melodia, e sente, para o seu desespero, deslizar sobre a sua cabeça o alpiste do dia anterior. De lá de cima, ele observa tudo e se sentia um ser à parte deste mundo. Ele tinha a plena convicção de que estava nesse mundo por acaso. Olhava para tudo como se não pertencesse ao mundo. Tinha a sensação de ter sido convidado para uma festa que na hora de cortar o bolo o mandaram para fora.

Vivia dizendo para os amigos que iam visitá-lo de vez em quando, que a vida é um grande teatro e todos nós representamos papéis, escolhemos os personagens que queremos ser e representamos até o fim de nossas vidas, e que, portanto, ele escolhera não representar papel algum, a ter de mudar de papel constantemente que é o que a maioria faz. Seus amigos não gostavam muito dessa sua ironia, e quando insistia muito levantavam e iam embora. Como percebera isso, sempre usava essa arma quando estava de saco cheio e queria se livrar das pessoas à sua volta. O fato de ver o mundo como um grande teatro o impedia de se relacionar diretamente com as coisas e as pessoas, afinal, tudo não passava de uma ficção, e, no fundo, ele também era um personagem que só tocava na superfície das coisas e das pessoas.

Às vezes ficava horas sentado à beira da janela contemplando os pássaros, tentando adivinhar os desenhos que eles rabiscavam no seu vôo. Vez ou outra, na perseguição de um pássaro, encontrava atrás dos desenhos na janela do prédio em frente, uma mulher se despindo. Pedia licença para os pássaros e descrevia uma rota alucinante em direção àquela janela, e lembrava-se então, de sua última namorada, que a conhecera representando a mesma cena numa boate do centro. Ela era também muito bonita, mas tinha um coração muito grande e amava a todos sem distinção. Ele não tinha ciúmes, era até mesmo indiferente a tudo, e a indiferença é um veneno amargo que nenhum ser humano consegue suportar por muito tempo. Talvez ela o tivesse amado mais do que os outros e por isso se matou. No cemitério só estava ele. Era outono e flores amarelas caiam sobre o caixão dela. Os pássaros com suas vozes carpideiras davam solenidade àquele minuto. Despediu-se dela e saiu dali com os olhos olhando para o nada, sem derramar uma lágrima sequer. E era assim que ele estava agora na janela, com os pássaros e a mulher nua que do outro lado representava em vão.

Os dias passavam para ele como os metrôs passam pelos túneis na sua obrigação rotineira. As cortinas estavam lambuzadas de vidas anônimas que pedem passagem, que querem sonhar, que querem viver, que querem sorrir. A criança que chora no andar de cima anuncia apenas uma entre as milhões de torturas dos que estão condenados a viver, mas, as risadas divertidas do casal do andar de baixo anunciam as alegrias dos que estão livres para a vida. Indiferente a tudo isto, ele continua lá como um monge asceta que decidiu evitar as dores e os prazeres do mundo. Agora, ele olha para a janela com ternura, há muito tempo que não sentia algo parecido, quer penetrá-la, atravessá-la. Dá um pulo, faz um zigue-zague com os pássaros no ar, sorri como há muito tempo não sorria, e pensa – enfim, a liberdade. Dá um mergulho para a vida e encontra o asfalto que lhe espera impassível.



JULHO DE 2003

Um comentário:

  1. O asfalto não me atrairia... Prefiro um veneno, como a Dama do Crime preferia. Mas a liberdade é coisa que só um pulo oferece.
    Gostei do texto.

    Até.

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